sexta-feira, 27 de fevereiro de 2009

Críticas

Cariry, Patativa e a poesia


Pedro martins Freire - Crítico de Cinema


Se a história do Brasil não sabia de Patativa do Assaré, Rosemberg Cariry, em seu melhor filme, o trouxe até ela e o inseriu com a grandeza de um ato de reconhecimento e justiça. Geralmente, nós cearenses não sabemos reconhecer o trabalho e o talento do conterrâneo, preferindo apontar-lhe algum defeito ou caluniá-lo. Sei não, mas parece que esta cultura está mudando.
O filme pode ser uma prova disso. Até agora, poucos tinham visto Patativa do Assaré como personagem da história. Talvez, por conhecê-lo apenas como poeta, seja pelos jornais, televisão, revistas, ou através dos versos cantadas por Luiz Gonzaga ou Fagner, ignorando a sua vida pessoal, cuja trajetória esteve sempre marcada na participação e luta pela consciência política do sertanejo, não apenas através de seus versos, mas dos seus discursos e atos. Este é o grande mérito da obra de Rosemberg Cariry.
Cariry realiza com “Patativa do Assaré - Ave Poesia”, aquilo que a nova visão crítica do cinema exige de uma obra: política e história. São os homens que as fazem e uma está intrinsecamente ligada a outra. O filme de Rosemberg faz lembrar a todos que Patativa não era apenas um poeta, um homem iletrado do sertão com o dom da fala, mas o homem que construía o processo de consciência política através de seus versos, conversas, discursos e subidas aos palanques. Patativa sabia do nascimento da vida não apenas como obra do acaso, e nunca se deixou levar pela falácia de que as coisas são porque são. Notem nestes outros versos da mesma obra citada acima: “Deus, o autor da criação,/nos dotou com a razão,/bem livre de preconceitos,/mas os ingratos da terra,/com opressão e com guerra, negam os nossos direitos”. Mais adiante, complementa: “Já sabemos muito bem,/de onde nasce e de onde vem,/a raiz do grande mal,/vem da situação crítica,/desigualdade política,/econômica e social”.

Homem e mito

Versos como estes levaram o homem sertanejo à reflexão. E deram a devida dimensão política daquele filósofo que, mais tarde, se diria socialista e se negaria comunista. O resgate de Patativa como um homem da história do país, a grande sacada do filme de Rosemberg, deu-se dentro de um processo que o próprio filme expõe. Através das revelações do próprio Patativa e nas participações do escritor José Carvalho, da ex-secretária de cultura Violeta Arrais, do professor Gilmar de Carvalho, do ex-governador Tasso Jereissati, entre outros, construiu-se a história do homem e do mito Patativa do Assaré.
Está no filme o homem até então desconhecido pela maioria das pessoas: o poeta da resistência política à ditadura militar, de participação em manifestações infantis, camponesas, sindicais, no palanque pelas Diretas Já. A redescoberta dessa trajetória de Patativa talvez formule contestações, mas jamais a exposição histórica de Rosemberg poderá ser acusada de falsear ou distorcer os fatos ou alterar a realidade.

Recursos históricos

Rosemberg se cerca, como fator prioritário, de uma vasta documentação histórica, que surpreende pelo ineditismo. Registros dos ditadores militares na Amazônia, a Transamazônia e o primeiro “transamazônico”, os documentários e peças publicitárias de ações do governo nos cinemas e nas emissoras de televisão com obrigatoriedade, entre outros, ganham relevância na reconstituição do período mais crucial vivido pelo País no século XX.
“Patativa do Assaré - Ave Poesia” surpreende principalmente com o resgate de imagens documentais até então tidas como perdidas ou inexistentes. A inauguração da primeira estátua de Iracema, na avenida Beira Mar, em 1965, por Castelo Branco, é uma delas. Registro que serve, entre outros, para mostrar, rapidamente, este outro cearense, de memória menos agradável.
O rico acervo utilizado por Rosemberg, especialmente as imagens de Patativa em super-8, película e vídeo, nem sempre é de boa qualidade, mas são documentos únicos. No contexto, enriquecem o filme, servindo para expor o poeta em seu cotidiano e simplicidade, na roça, em casa, em sua criação.
Rosemberg realiza o seu grande trabalho, em uma filmografia rica e coerente. No processo da maturidade como cineasta, Rosemberg, alça o homem e o poeta à condição de personagem histórico - o qual ele sempre foi, mas esqueceram de lembrar. No entanto, a maior contribuição deste filme notável será despertar o interesse de cearenses e brasileiros a conhecerem Patativa. E a emoção que brota do filme, genuína e pura, e atinge a platéia, é coisa do filósofo Rosemberg. É coisa de Patativa.


Diário do Nordeste – Caderno 3 – (Fortaleza, 6 de junho de 2007)

A comoção com Patativa do Assaré

Luiz Zanin – crítico de cinema

O filme que arrebentou a boca do balão, até agora, foi Patativa do Assaré – Ave, Poesia, de Rosemberg Cariry. Acompanhado por um Cine São Luís lotado, foi várias vezes aplaudido em cena aberta, em especial quando surgiam as imagens do velho Patativa, declamando seus poemas (de fundo social, muitos deles). Ao final, o público aplaudiu de pé. Era o que faltava para o festival pegar no breu.
Rosemberg Cariry trabalha com todos os materiais disponíveis. Trechos de super-8, 16 mm, 35 mm, passando pelo vídeo. Sem preconceitos. Nas imagens se registram as várias etapas da trajetória do poeta e cantador sertanejo. Outras vezes, as palavras de Patativa são cobertas por cenas da história política recente do Brasil – da ditadura militar à redemocratização, com a passagem de Collor, seguido de Itamar e Fernando Henrique Cardoso. Também se utiliza, com inspiração, de material cinematográfico tirado de filmes como Aruanda, de Linduarte Noronha, País de São Saruê, de Vladimir Carvalho, Viramundo, de Geraldo Sarno, entre outros.
A idéia é não apenas ressaltar o aspecto engajado da poética de Patativa, como destacar que as lutas sociais não avançaram um milímetro no sentido de propiciar melhorias ao povo mais carente do País. Povo, bom lembrar, do qual Patativa fez parte, como filho de uma grande e pobre família do Nordeste cearense. (...)
Essas escolhas, como se vê, ressaltam uma leitura de esquerda da trajetória do personagem. É uma opção do realizador e não falseia a história de Patativa, que sempre protestou contra a miséria do seu povo e, a certa altura, declara ter lido Marx e Lênin. Fez também versos em prol da reforma agrária e participou do movimento pela anistia, sendo homenageado pela SBPC no movimentado ano de 1979. Sem ser piegas, o cineasta aborda também assuntos dolorosos. O poeta perdeu uma vista na infância, em decorrência de um sarampo mal curado. Na velhice foi ficando progressivamente cego, até deixar de enxergar, de todo. Foi atropelado em Fortaleza, ficou 11 meses internado e, a partir de então, teve dificuldades para caminhar. (...)
Sei bem que existem sabichões urbanos que desprezam esse gênero de poeta e esse tipo de manifestação artística. Não sabem o mal que o preconceito lhes faz.

Estado de São Paulo – 5 de junho de 2007


O sábio de Assaré

Natália Paiva – Repórter



Rosemberg Cariry e Patativa do Assaré em pleno sertão cearense: o primeiro paixão pelo cinema, o segundo encantamento pelo cordel (Divulgação)
Essa história tem dois meninos. O primeiro tem oito anos e mora num sitiozinho na Serra de Santana, a 18 quilômetros de Assaré. Isso nos anos 1910. "Na idade de oito anos, a primeira vez que ouvi ler um folheto de cordel, eu fiquei como que encantado. Parece que um novo mundo entrou assim na minha mente e fiquei logo sabendo que, eu querendo, podia também fazer verso", contaria, anos depois, o menino-poeta alcunhado Patativa do Assaré. O outro, na idade de cinco anos, ainda morando com a família no município de Farias Brito, no final dos anos 1950, treme de emoção ao ver imagens em movimento projetadas por um cinemeiro sobre um velho lençol. Nunca mais Rosemberg Cariry iria esquecer aqueles fotogramas que corriam sobre o pano branco. Apesar dos 53 anos que separam a meninice de poesia!
Quando se diz que, nesse filme, se encontram os dois meninos, é porque tanto para Patativa quanto para Rosemberg tudo começou muito cedo, no embevecimento ante o maravilhoso da literatura e do cinema, respectivamente. Não é à toa que o último plano de Ave - será que ele tinha noção de que o menino-sertanejo também era ele? Na conversa num domingo à tarde, na produtora Cariry Filmes, Rosemberg se lembra da infância no Crato, cidade para onde a família se mudou no início dos anos 1960. Conta que, ali, os meninos costumavam ter duas diversões: uma era o cinema, em suas seis salas com o melhor da produção nacional; outra eram as manifestações populares em reisados, congos, festas de renovação, cantorias. (...)
Rosemberg teve muita dificuldade em aceitar a morte de Patativa - e só conseguiu compreender sua morte quando viu as imagens do funeral. Talvez o fato de o filme começar exatamente nesse confuso 9 de julho de 2002 seja uma forma de expurgação. Durante anos, Rosemberg não quis mexer no material. "O debruçar sobre isso seria o debruçar sobre a minha vida. Tanta coisa que estava ligada a mim, a momentos que eu vivi. E um dia eu resolvi. E foi muito difícil, passei quase três anos mexendo nesse material. Montando e remontando, montando e remontando". Num primeiro momento, o filme ficou imenso, dividido em cinco capítulos. (Depois resumidos em 84 minutos).
(...) Pela riqueza do personagem, o filme poderia ter ido por vários caminhos. Mas o recorte escolhido é o viés político. Em seus 84 minutos, de jornais, publicidade e filmes - e depoimentos, que são costurados às imagens do próprio Patativa, no cotidiano de sua casa ou em entrevistas ao cineasta (que aparece nos óculos do poeta, sinal mais que óbvio da presença afetiva, não apenas física, de Rosemberg). "


Jornal O Povo - Caderno Vida & Arte (Fortaleza, 04 de junho de 2007)

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